segunda-feira, dezembro 27, 2004

A Besta e o Bestial

Todos nós já ouvimos, por diferentes razões, a expressão que serve de título a este texto.. No futebol, na política, na cultura, enfim, em todas as vertentes da nosso dia-a-dia. De facto há sempre quem se sinta ultrapassado e que afirme com o ar mais triste e tolo do planeta que: "de bestial passei a besta". O curioso e engraçado é que, regra geral, quem o afirma, faz, normalmente, ar a condizer... de besta!
Haverá quem pense, neste momento, que escrevo sobre as pessoas bestiais que são responsáveis por concursos públicos que decorrem nesta terra e que vou falar de cunhas e compadrio. Não, ainda não! Por enquanto recolho dados sobre esse assunto e aguardo com a tranquilidade bestial de quem pensa que já tem dados para confrontar as bestas. Outras valsas que, com prazer, dançarei a devido tempo. Lá iremos, com força, com intencionalidade, com tempo, com serenidade e…com certeza!
O tema que me faz falar agora tem a ver com as crianças deste concelho.
Há dias, a filha de um amigo meu, pegou no telemóvel e telefonou da Ilha Terceira, de Angra do Heroísmo, onde foi, orgulhosamente representar o Pico num evento desportivo, e disse; "Estou num jardim espectacular!".
O pessoal de casa disse; "Parabéns rapariga!" (pela participação)…e ficou a pensar que um jardim infantil é uma coisa básica…como é que na Madalena não existe tal infra-estrutura??
Coisa Besta!
Para piorar o sentimento do pessoal e como se estivesse a enviar recados, o raio da rapariga voltou a telefonar e disse: "Agora estou na Praia da Vitória, num jardim bestial!".
Já não era uma questão de coisas. Era necessário dar o nome às pessoas. Quem era o responsável, na Madalena, pela falta de tal infra-estrutura? Quem seria a besta? A familia partilhou conceitos, premissas, raciocínios e teorias e…nada! Um imenso vazio que só nos envergonhava perante a criança.
A rapariga voltou para casa, triunfante, como não podia deixar de ser, e com a ingenuidade que só é possível naquelas idades disse, com o ar mais angélico que os diabos sabem imitar; "Fortes jardins que há na Terceira!".
Ficamos encurralados…silenciosos…
A coisa passou e, pesavamos nós, o tempo se encarregaria de a fazer esquecer o assunto. Erro nosso!
"Vou a São Jorge! Vou representar o Pico outra vez!"
Confesso que me senti aliviado. Em São Jorge o que é que existe que possa pôr em causa a nossa calma do dia a dia? Nada!…Pensava eu….
"Alô!" ouvi eu do outro lado do telefone. Já sem angustias porque o atraso alheio me dava sensações de desenvolvimento, respondi inquisidor: "Olá rapariga! Que tal correu?"
"Fiquei em segundo!"
"Boa rapariga, parabéns! E agora onde estás?" perguntei com segurança.
A resposta ecoou-me no cérebro com a força de uma Intifada: "Estou num parque bestial!".
Sem qualquer responsabilidade no assunto senti-me besta. Tenho de confessar que na minha qualidade de adulto, votante, habitante e interessado nas coisas da terra senti que a culpa também era minha por residir numa vila em que o melhor conceito estético público é o das barracas de plástico preto de Santa Maria Madalena. Que o conceito de edíficio agradável ao público era o dos grandes barracões que ornamentam as entradas da nossa Vila. Que o conceito de Urbanismo moderno é o de construir armazéns em zonas residênciais e que, sobretudo, as coisas básicas são esquecidas.
"Viva!" voltei a ouvir a voz jovial, uns dias depois, já regressada a casa.
Acordei da minha indignação e fiz a cara que todos os adultos fazem quando querem tréguas com a sua consciência e aguardam a melhor oportunidade de reporem a sua imagem face aos mais pequenos.
"Diz!" Inquiri com ares de quem dá seja o que for para limpar a consciência.
"Vamos ao Cais do Pico ver o jardim espectacular que fizeram lá?"
"Vamos, toca a andar! Espera um bocado que vou fazer uns telefonemas." E fartei-me de telefonar. Eram quatro ou cinco carros cheios de testemunhos que, pensava eu, me iriam ilibar das culpas que, apesar de alheias, eu sentia com desconforto. Rumamos ao Cais do Pico. Acho que até cantei, na viagem, a cena das ilhas de bruma. Senti-me açoreano, picaroto e madalenense. Não ia aos Mouros mas ia em viagem de redenção. Parque bestial no Cais do Pico…ah!…ah! deixa-me rir!
E lá chegamos. Saimos dos carros e, adultos e crianças, corremos em direcção ao parque. Eu fui mais devagar, antecipando o momento de triunfo, pensava eu. Quando, de repente, comecei a ouvir os espantos das "testemunhas": "Bestial, está bestial!"
Ainda incrédulo acabei por vislumbrar o parque; o auditório, a zona de bailado, as árvores, os jogos infantis, os quartos de banho, os relvados, a iluminação, a fonte e as suas cores e, sobretudo, o sorriso dos míudos que foram na comitiva.
A míuda, com ares de entendida perguntou-me "Não é bestial?"
Respondi desanimado; "Sim!"
"Porque é que não há um na Madalena?"
Confesso que não pensei na resposta e, disse derrotado: "O nosso presidente da Câmara é uma besta!".
A rapariga riu-se, como se sempre soubesse a resposta e se tivesse limitado a facilitar-me a conclusão.