terça-feira, julho 11, 2006

As luzes da Madalena

Mais roliça do que gorda, Madalena não era vaidosa. Pelo contrário, marcada no corpo pelo esforço de viver, Madalena, outrora gentil menina, era agora uma senhora cansada dos abusos da miséria, que deixava a sua aparência espelhar os anos que por si passavam e o abandono a que tinha sido votada. E sentia-os muito. Sentia-os sempre a dobrar.

Das pregas do corpo exalava o cheiro das lides. O cheiro da vida remediada que tornava o ar carregado de estrugido, de suor e de terra. Madalena tinha-se habituado e gostava. Gostava mesmo quando o odor a peixe se sobrepunha aos gritos do matrimónio conturbado e, forte, perdurava para além de qualquer reconciliação apressada e do prazer fugaz que se consumava, de pé, mesmo ali, agarrada ao fogão. Na sua simplicidade, pensava que era o cheiro natural do amor.

Madalena era um ser generoso que esculpia a sua vida a partir dos nadas que a compunham. Sonhava momentos de perfeição e nem as maiores calamidades a despertavam do seu torpor. Vivia alegre na sua ignorância e na incapacidade de vislumbrar para além do seu quintal.

Naquele dia mirava ao espelho a pele franzida, as marcas profundas de quem nunca teve o que merecia e desenhava no ar o contorno das borbulhas, a adiposidade das ancas e as varizes que lhe coloriam de púrpura as pernas grossas.

Gostou das cores e sentiu a vontade arrebatadora de se tornar bonita. Imaginou uma vida de luz e de cor que escondesse o cinzento da seu dia a dia miserável. Um clarão que apagasse da memória, para sempre, o traço do seu corpo abusado.

Madalena era empreendedora.

Laboriosa trabalhou sem parar até construir um mundo de luzes mirabolante. Ao fundo da sua memória foi buscar todas as imagens que a tinham feito feliz. Simples como era, as imagens sucederam-se em quantidade tal que quase comprometiam a sua capacidade de trabalho. Conchas, sardinhas, faróis, cata ventos, carrinhos de feira, até uma cartomante e um senhor de quem ela já não se lembrava mas que sabia que tinha sido generoso. Todo o seu imaginário foi transformado em estátuas de luz.

E foi assim, desleixada e cansada que aguardou o marido. Sorria contente, antecipando o início da vida nova. Perdida na claridade, Madalena suspirava pelo amor que não conhecia mas que, no fundo, acreditava existir.

Mal a porta bateu, Madalena, trémula de excitação, não se controlou e correu pesada ao encontro do seu destino.

- Olá!
- Olá!
- Gostas?
- Apaga a luz!
- Porquê?
- És feia!

Na pressa de agradar, incapaz de contradizer quem tanto lhe dava, Madalena captou o momento. Depois, com uma ligeireza que desconhecia, Madalena apagou a luz.


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