sábado, maio 07, 2005

Sonhos de viagem 1

Correm carros em todas as direcções. Sento-me à saída da área de serviço da auto-estrada e aprecio as marcas. Nada têm a ver com os automóveis do meu país. Admiro a riqueza e o bem estar.

Ao meu lado a mochila. No gravador de cassetes toca, a toda a força, o som dos Doors. Sinto-me cansado, tenho fome e sono. Lembro-me de casa. Os coelhos, as vacas, os porcos e as galinhas. Lembro-me sobretudo do tractor que me faz ganhar o salário.

Dezoito anos, tractorista e agricultor. Estudante nas horas vagas e viajante por natureza.

Um impulso fez-me reunir alguma roupa, umas latas de comida e alguns escudos e abalar. Ver o mundo. Uma promessa dúbia de trabalho na Suiça deu-me a força final. As curvas da estrada e as sortes da boleia trouxeram-me até esta encruzilhada. Já li vinte vezes a tabuleta: Aachen 250 Km.

Cai a noite e o frio da Europa do Norte começa a incomodar-me. A noite está limpa e as estrelas brilham nos intervalos das luzes dos carros.. Mantenho o dedo esticado mas ninguém pára. Estou aqui há seis horas.

O mundo continua a mover-se mas eu, insignificante na minha reduzida dimensão cósmica continuo parado. Não desisto nem desespero. Aprecio as luzes e, sobretudo, penso na importância da vida. Retiro da mochila o saco-cama, procuro um arbusto e chamo casa aquele bocado de chão. Agora é meu, o meu castelo. Encosto-me. Primeiro desconfortável e, depois, sentido que aquele lugar sempre esteve à espera da minha chegada. Chão, terra, céu e eu numa cerimónia quase eucarística, fundimo-nos na celebração do mundo.

Adormeci.

Perdi o tempo e o espaço. Os carros eram naves e o céu a minha estrada. Ao fundo, num zumbido irritante ouvia o som das víboras. Nada diziam no seu zoar maléfico. Ainda percebi uma voz saída do nada que vomitada duma cara cornuda arremessava ameaçadoramente uma ladaínha: "Leiam o Boletim 162 da Câmara Municipal de Arouca",

Puta que o paríu. Cortou-me o descanço que tanto precisava depois de dia e meio de viagem. Sorte de mafarrico sem cara, cobarde nojento.

Acabou-se o som no gravador. Apenas se ouve o silvo dos carros a acelerar. Acendo um cigarro e rapidamente esqueço o sonho. A realidade é bem mais forte do que agonia descontrolada do delírio. Sinto fome. Abro a lata de atum. O "bom petisco" antecipa-me o futuro que, naquele momento, tinha a mesma importância que o passado. Ambos atropelados por um presente estagnado. Era o sabor de uma ilha que aínda era uma probabilidade vaga, dependente de milhares de acasos possíveis. Uma promessa.

O pão duro e a coca-cola quente refrescaram-me o ânimo.

Bota música!

A alma de Africano ditou o Peter Tosh. O som ritmado, certo e contínuo fez-me dançar. Levantei-me e acompanhei a música: "I shot the sheriff". De braços levantados estava longe de imaginar os pontapés que ainda havia de dar nos "xerifes" de pacotilha que iria encontrar ao longo da minha vida. "It was in self defense". Acho que, tal como agora, era o que dizia a canção.

Bem disposto e retemperado, encarando mais a viagem interior do que a mundana, voltei a esticar o dedo. Pararam dois carros mas nenhum ia para onde eu queria. Fiquei apeado. Desta fez porque quis, não por falta de alternativa.

Recostei-me de novo, sem vontade de me mover. Porquê ir para a Suiça se a Alemanha também era fixe. Senti-me bem e, olhando o céu, voltei a adormecer.

As imagens eram difusas mas penetrantes e impositivas. Um homem de saia preta dançava ao som de música sacra. Preso ao pescoço um colarinho branco que se transformava em coroa de espinhos sempre que a personagem gritava rouco e desesperado: "Tenho um filho no 9º ano!". Incomodava-me o sonho mas não me dei ao trabalho de acordar. Acho que estava a aprender a gostar de ver a impotência do desespero. Além do mais, a personagem parecia mais ébria do que ameaçadora.Vi-me no sonho. Tinha um dedo esticado, ria-me e cantava musicas de ontem. Foi ao som do "Grandola Vila Morena" que acordei.

Raio de cassetes gravadas e regravadas. Fica sempre um gemido para a posteridade, Hoje era o lembrete de revoluções próximas.

Parou um carro.

"Aachen?"

"Claro! Porquê?"

"Tem uma catedral com passado e estátuas esotéricas"

"Vamos?"

"Claro!"

Senti-me confortável guiado por aquela alemã, grande e com mais de cinquenta anos. A idade, naquela altura, ainda era algo de visível e revelador. Senti deslizar o mundo na berma da auto-estrada e vi o futuro aproximar-se a cada minuto. Sentia-me na roda gigante, na roda da vida. Padres rodopiavam bêbedos agarrados a jovens ninfas que riam histéricas, pensando que, ao seduzir o "mensageiro", tinham comprado a entrada do reino dos céus. Inchavam de soberba e de luxúria sempre que, em coro, os tristes clérigos gritavam: "temos filhos no 9º ano". Elas ficavam grandes, gigantes e enchiam o céu com as suas pernas gordas, parindo crianças prontas a entrar no 9º ano. Sei agora que tinha adormecido de novo.

Fora sarnentos, filhos da puta!

"José, acorda!"

"Então? A passagem de modelos foi boa?"

"Correu bem. Os jovens do clube europeu organizaram tudo muito bem"

"Óptimo!"

Semi acordado, pensei na facilidade que os jovens de agora têm e na possibilidade de conhecer o mundo. Seguem os jovens, no domingo, para terras de França. Mais um intercâmbio. Coisa boa! Divirtam-se!

Só espero que tenham mais sorte do que os finalistas que, estando em Barcelona, nada viram de Gaudí porque os professores preferiram o "El Corte Inglês".

Acordei completamente.

"Estavas com pesadelos?"

"Não! Divertia-me! Tenho prática de lidar com porcos e galinhas."

1 comentário:

Rocha disse...

Sobre o 15, tenho de dizer que se todos respondessem em verso, a coisa era mais animada e tinha mais piada. Não me refiro a colocar palavras de seguida mas sim à velha escola portuguesa; a das rimas. Leiam o sr. Valim ou ouçam o padre a cantar as velhas.

Se assim fosse já posso imaginar o sr. que colocou o comentário a dizer que a escrita era do padre a responder:

Foi num tempo recuado
Em noite de lua escura
Na pobre cela isolado
Pariu-o o padre cura

Foi um prazer solitário
Que lhe deu a natureza
É fruto do seminário
Tem toda a sua esperteza

É claro que o padre haveria de responder e não poderia dizer outra coisa se não:

Ó menino meu amado
Minha pobre consolação
És o fruto do pecado
E da minha perdição

Não é pessoa real
Nem nada que se veja
É mero fruto do mal
E da festa da cerveja

O observador anónimo que concorda com os comentários do artista também haveria de querer entrar na dança e escreveria:

Com tanta inteligência
Ganha coragem o infante
Faz tratados de ciência
convence o pai ignorante

Ultrapassa o projenitor
Ó orgulhoso rapaz
Mostra ao sr. doutor
Aquilo de que és capaz

Sai ao pai o coitadinho
Com visão muito estreita
Não vê barreiras no caminho
Nem faz coisa mal feita

Por sua vez os comentadores que são contra haveriam de replicar:

Já fez o nono ano
Domina o abecedário
Mais ano menos ano
também vai pró seminário

Vejam que bem que escreve
A todos ele responde
Mas afinal só se atreve
Porque no anonimato se esconde

O leitor que não concorda com nenhum, fica atónito com a revelação e comenta, sem esperar resposta:

Ri o diabo contente
Com tal informação
Que regalo, que presente
Que grande revelação

No inferno o fogo arde
Prepara-se a recepção
Lá vem a alma do padre
Negra como um tição

A coisa ganha tal proporção que é inevitável a participação de gente com menos "papas na língua". O que podem eles dizer? Apenas o óbvio:

Se isso é mesmo verdade
Não encontro outra maneira
Digo-o sem maldade
Não é filho! é caganeira!

Não posso acreditar
Em tamanha revelação
Ou nasceu sem ser de par
Ou é filho de cabrão

Eu, que nada tenho a ver com o assunto, vejo-me na obrigação de encerrar o tema:

Ao pai do precoce petiz
Dou apenas um conselho
Continue assim feliz
Mas mande calar o fedelho


Fim da brincadeira!