sexta-feira, abril 08, 2005

Benditos sejam os lúcidos…

Hoje não foi, de certeza, o dia de minha maior boa disposição. Pelo contrário. Fui insultado, abordado na rua e provocado de várias maneiras. A minha convicção não se alterou mas, não posso dizer o mesmo da minha disposição.

Agora, perto das duas da manhã, sorrio. Não por algum perverso sentimento pecaminoso de superioridade moral. Não pelo sentimento volátil que emana da resposta pronta e da aparente vitória verbal. De maneira nenhuma pela falsa coragem da frequência solitária de todas as tascas da terra.

Pelo contrário! O que me faz movimentar os músculos faciais é o sentimento de inutilidade, de futilidade e do absurdo. Adoro o absurdo! Acho-o o verdadeiro motor do desenvolvimento intelectual. Nem o Mister Bean nem os três estarolas são capazes de transformar situações da mesma forma hilariantes que “o povo” consegue.

A haver concurso de "mister santo", já temos vencedores. Não seria um concurso típico. A santidade não resulta das acções mas sim dos afectos e das lealdades. Em vez de se tentar projectar a urina o mais longe possível, o truque é ter o território marcado. Não se trata de cuspir mais alto mas sim de fazer salivar em maior abundância. Não é importante a corrida que se faz mas sim a quantidade de devotos que se faz correr. O “mais alto, mais forte e mais longe” Olímpicos perderam o seu significado. Impera a subtileza subjectiva do poder de controlo da mente.

Não ganhei nenhum concurso mas, diga-se em abono da verdade, não tive pachorra de concorrer. Em vez de participar, perdi o meu tempo a pensar no meu adeus e na forma grandiosa do meu despedimento. Festa e arraial são permitidos e, aconselho, crie-se um novo shot: "o esticadinho".

Sendo essa a disposição, não poderia terminar a noite de outra forma que não fosse com apego à modernidade e, particularmente, à inundação dos sentidos pela quantidade exuberante de estimulantes.

No visual começo pelo DVD "As Bruxas de Salem" em que meia dúzia de miúdas sexualmente frustradas se tornam no fiel da balança entre o bem e o mal. Os juízes pendem para a santidade e, como quase sempre que a maioria popular decide, uma série de inocentes são enforcados enquanto os culpados, na sombra, rejubilam até ao suicídio.

Concluímos que em certas cabeças só entra o que, do ponto de vista da psicologia social, não fragiliza os alicerces comunitários. Já Lenine tinha percebido este facto quando, em 1917, inventou a palavra de ordem que dizia: "A terra a quem a trabalha!". Todos os fiéis do Czar e da Santa Igreja Ortodoxa trocaram as crenças pelo sentido da melhoria de vida. O povo é volátil e aceitou a troca, abraçando o novo conceito que trazia atrelado outro que dizia: "a religião é o ópio do povo!". Os Anarquistas riram baixinho e acrescentaram: "o capital é o clítoris do povo!".

Soa agora o Miserere, do CD de Jommelli, uma espécie de Enigma sério ou de Adiemus sacro. Queria a Carmen, a Tosca ou, ironia das ironias, a Carmina Burana e os seus sacerdotes mais ou menos alcoolizados. Jommelli dá-me a mesma dimensão cristã sofrida e piedosa. Não chega ao silício da Opus Dei mas aproxima-se da seriedade Franciscana. Oiço sem cerimónia nem respeito. Nem mesmo quando a soprano Béatrice Mayo-Felip explica o "Beatus Vir".

Histórias dramáticas são as de Boris Vian que tenta manter viva a sua amada com flores frescas, ao longo dos anos. O absurdo pessoal sobreposto ao absurdo colectivo. Uma delícia!

Na literatura, sinto-me atulhado e não peguei em todos os que queria. Logo na primeira abertura da Bíblia apanhei com um incentivo: "Não te aproximes daqui, disse o senhor a Moisés, descalça as sandálias porque o lugar onde te encontras é uma terra sagrada" (Exodo, III, 5).

Também Mircea Eliade parte desta afirmação para confirmar que o espaço sagrado é fixo e distingue-se do profano pela sua permanência. A necessidade de centros e de pontos de partida reflecte-se no espaço e no tempo. Todos os anos há a procissão de Santa Maria Madalena. Não é antiga nem moderna. Não tem continuidade. Pelo contrário, sendo sempre igual, dá-nos a ideia de perpetuidade e imutabilidade. Desrespeitar o espaço e o tempo sagrados é torná-los profanos…inúteis para a alma.

Saltei, de propósito, o episódio da primeira pedra porque a analogia é pobre, "uma frase batida", como diria o Sérgio Godinho. Se ninguém tivesse atirado um monte de pedras a Hitler, ainda lá estaria o regime a acumular cadáveres de judeus e outras minorias. Primeiras pedras atiro-as eu de bom grado, sempre que o perigo seja a asfixia das ideias. Claro que me sujeito, de cabeça levantada, à derrocada do juízo final.

Tropecei sem querer, no Signo do Humberto Eco. Foi involuntário porque lhe reconheço a complexidade. No entanto, sempre que estou bem disposto as coincidências são contínuas, o livro abriu-se nas variáveis dos signos diferenciados pelo comportamento que estimulam no destinatário. Refere Eco que existem símbolos Prescritores. São aqueles que sugerem e comandam comportamentos. Como diria o autor; O seu significado é um "Obligatum". Relembra, para os leigos, uma aula de moral em que as conclusões do pobre moralista não são mais do que um "Obligatum" para os seus alunos. Imagine-se este tipo de símbolos numa comunidade como Salem. O resultado seria pior, sem qualquer margem de dúvida, do que deixar à solta o "Gang dos Tubarões". Nada há pior do que moralistas encartados e legitimados.

Neste contexto, Serge Moscovici realizou o seu estudo sobre a "psicologia das minorias activas". Considero particularmente tocante o capítulo sexto em que a premissa de estudo afirma que: "Assim que um indivíduo ou um sub grupo influenciam um grupo, o principal factor de sucesso é o estilo de comportamento". O contrário é uma defesa palpável. O controlo do grupo, se não alterar o teu comportamento, não se verifica. No que me diz respeito é uma vitória à Mourinho.

Alteração…Nicles!

De certeza que este é um acto com significado. No entanto não o será da mesma forma que o mestre Jerome Bruner o classifica. Só mostra que no céu há mais do que Cagarras e que a Santidade não é uma "ave-do-paraíso". A santidade é uma via de dois sentidos e não está ao alcance de quem queima calorias indo em frente, aos atropelos. Os santos, pelo menos os conhecidos tiveram de remar, muitas vezes, contra as marés institucionais. Salvé Madre Teresa de Calcutá que nunca soubeste o que eram as sopas do Espírito Santo nem a delícia gordurenta de uma boa matança de porco.

A sabedoria popular, que tantas vezes aceito e que muitas mais escarneço diz, no Norte do País, que: "mais vale ser um santo de pau feito do que um santo feito de pau". Compreendo o dilema da escolha e percebo o conceito. Não acho piada. No entanto, "a voz do povo é a voz de Deus" e, limito-me a recolher informações e indicadores suficientes para perguntar – quando, uma beata me disser: "é um santo!" – "de que tipo falamos?".

Os versículos Satânicos, não abro. Estou no fio da navalha e não me apetece bulir com outras realidades.

Fico-me com a "Regra de São Bento" que quase me faz católico quando afirma no seu capítulo XXX que "A cada idade e grau de inteligência se devem aplicar normas apropriadas. E assim, quando os meninos ou adolescentes…caírem nalguma falta, castiguem-se com prolongados jejuns ou ásperos açoites, para se emendarem".

Concordo que a cena dos jejuns poderia fazer milagres pela estética da nossa comunidade que, em certos casos de soberba, roça a obesidade mas, sinceramente, o meu pendor afectivo descai, de forma desavergonhada, para a opção do açoite.

Manda São Bento!

Nota: O texto parece hermético mas não é. É tal qual como estou dizendo!