segunda-feira, janeiro 17, 2005

Noites....

Duas da manhã. A noite está calma, apesar de o Pico soprar um vento frio. O céu estrelado, pontilhado de luzes até ao infinito, mostra-me a verdadeira dimensão divina. Daqui vê-se o Universo. Não há sondas nem mecanismos que me mostrem a beleza que, deste lugar, consigo contemplar. Basta abrir os olhos.

Estou em casa.

Já disse boa noite a todos os meus fantasmas. Aos sete cães que aqui enterrei e a todos os que, morrendo, procuram este abrigo de candura. Aqueles que esperando a sua continuidade, a passagem para junto dos seus Deuses, fundem-se comigo e com a natureza. Vejo as suas luzes cintilarem.

São almas!

Acendi a lareira. Horas de imagens me esperam. Vè-se o cubismo e o fauvismo, Degas, Dali e Baudelaire, perfilam vitoriosos e derrotados nas línguas vermelhas que se debatem com o oxigénio. Staline, Hitler e Berneri, Reich, Freud e Piaget. Todos saltam das chamas recitando as suas premissas, impondo a sua presença.

Aprecio o debate.

Sentado no meu sofâ, beberricando um chivas com uma pedra de gelo e um "stick havana" que comprei na mesma tasca onde Hemingway chafurdava no seu "mujito". Pego no comando, tonto de teorias, e aumento o volume da música. Toca "La traviata" de Verdi. Lembro-me de a ter ouvido, ao vivo, no São Carlos. Também no Marinski em São Petersbourg e na Ópera House de Praga. Sempre com o mesmo sentimento, absorto de mim e do mundo. Não vivo a história. Vivo as oscilações do som e a perfeição das vozes, como se se tratasse do desenho exacto das nove portas do universo. Das sete passagens para a fusão do ser. Das três vias para a felicidade. Como se não fosse nada.

- Um reflexo da tua sexualidade!
- Comercializa os sentimentos!
- Obrigado Freud! Obrigado Dali!

A meus pés dormem calmos os meus cães. Estão habituados a esta confusão de estímulos. Apenas a Matilde, a rafeira, agita a cauda frenéticamente. Não percebe que nada se passa e prefere ir para a rua.
É nesta atmosfera solitária e tranquila, pelos meus parâmetros, perto do nirvana, do paraíso, do lux frágil ou do "insigt" clarificador, que me recordo, com um sorriso nos lábios, onde antes tinha gravado a minha admiração pela excelsa obra do criador, de uma conversa antiga.

Conversava com o meu bom velho amigo Restelo sobre os assuntos da vida. A moral, a ética, a política, o dever cívico e a força das palavras. Quiseram as circunstâncias que a nosso lado se sentasse uma espécie de cagliostro, uma figurinha fugida dos nossos pesadelos. Uma representação física da negação da humanidade. Camisinha com padrão quadriculado, pullover grená puído nas mangas e com manchas de gordura no peito. As calças amarradas junto ao diafragma forçavam um esgar de embaraço seguro. Abjecto mas altivo. Mastigava continuamente uma velha pastilha, abria os maxilares ruidosamente e mostrava, alvar, a pobre dentição, destruida, pigmentada de amarelo e negro. Cuspia na mão sempre que empurrava, de forma desajeitada e coquete, o cabelo ralo para o topo do pequeno cérebro.

- Escreves demais, textos muito longos! - Dizia o meu amigo.
- A vida é complexa. Os pensamentos para serem claros têm de ser explicados. A dialética é confusa mas, em última análise, esclarecedora. - Respondi.
- COOO….COOO…..COOOP - Disse, com um frémito no corpo, o Cagliostro.

- Torna-se chato! Ninguém lê. Para além do mais, às vezes atropelas a língua. E a língua é tabu. Quem a atropela, atropela os seus. A alma do povo! Refilou o Restelo.
- As ideias profundas são chatas. Mexem com os valores e incomodam. A língua é um veículo. Não tem valor se não utilizada. Serve, apenas, para deslocar uma ideia de um sítio para outro. O povo são as ideias, não os veículos!
- CROO….CROOO….CROOONGUE! Disse o outro numa chuva de cuspo. E riu, contente com a ousadia.

Já conto o resto. Vou só retirar o Albinoni. A sua música barroca, com o som metálico do cravo enerva-me. Faz-me pensar a um ritmo que os dedos não acompanham. 2h30 da manhã, são horas de Wagner; "Die Walkure". Rápido, forte e eficaz. Parece um livro sobre a gestão moderna. Adoro!

E dormir? Quando me apetecer. Patrão de mim mesmo! De qualquer maneira nunca o farei antes de ir saudar a lua e a "pacha mamma" (a terra).

- Atacas toda a gente. É uma atitude negativa. Parece que não gostas das pessoas e, para além do mais usas muitas reticências. - Atacou o meu amigo.
- Não ataco as pessoas. Nada tenho contra a maioria delas. De uns gosto mas de outros não. Tenho orgulho nos meus amigos. A questão central é o método, a forma, o insulto constante à nossa inteligência. As reticências dão tempo para pensar…quem conseguir. - Respondi!
- CROOON….CRONNNG……CRONNNNGRO! - Balançou-se o pendura, fazendo o gesto com dois dedos como quem pede um cigarro. O esforço fez com que respirasse mais rápido. Arfava, agora.

- Tens ideias que não se aplicam: Cidades, território, futuro, turismo, união, ética e política. - Continuou o Restelo.
- Talvez tenhas razão se pensares num futuro próximo. Pensa no futuro a prazo. Como tudo poderá ser mais harmonioso se for pensado, programado e estruturado à dimensão humana.
- COOOR….COOORRRR….CORRRRRR….. - Excitou-se à beira da apoplexia o estorpício.

- És um visionário, um ingénuo, um tipo que vive num mundo à parte. Não vais a lugar nenhum - Concluiu o meu eterno oponente, não permitindo, quase, a resposta rápida.
- Se calhar tens razão! - disse eu.
- COOORRRR….CORRRN….CORNO!!! - Disse a caricatura de Nosferatu, enquanto se encolhia com medo da resposta, Baixinho ainda disse: - Eu bom! Eu boooom! E fugiu!

O meu amigo, eterno contra, sorriu.

- Aprendeste?
- Não! - respondi.
- Então que dizes a este aleijão?
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